BIKEPACKING SPINO 2024 - SERRA DA ROCINHA

“A aventura começa quando tudo dá errado”. Ao começar a escrever esse relato de mais uma edição do nosso bikepacking anual, lembrei dessa famosa frase do Yvon Chouinard, alpinista e fundador da Patagônia. Num ano tão complexo quanto foi 2024, foi uma alegria conseguir realizar, mais uma vez, uma viagem reunindo clientes e amigos pra conhecer mais um bonito pedaço do nosso país, e de quebra, colocar a prova as nossas bikes naquilo para o que elas foram feitas. 

A Rocinha está localizada no entorno do Parque Nacional da Serra Geral, a região dos Cânions entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A estrada que percorre esta belíssima subida está em fase final de pavimentação, e mesmo antes de concluída, já virou um destino muito procurado entre os ciclistas. Menos conhecida que o Rio do Rastro e Corvo Branco, ela completa a trinca das subidas mais icônicas do sul do Brasil, e há quem diga que é a mais bela delas.

Nosso planejamento era nos reunirmos em Praia Grande (SC) numa sexta-feira a noite, e na madrugada de sábado seguir costeando os cânions em direção a Timbé do Sul, onde a subida tem início. Depois de acampar no topo da serra, retornaríamos pela parte de cima dos cânions, passando por Cambará e voltando ao ponto de partida, chegando no domingo a noite. Fazendo jus a palavra aventura porém, tivemos muitas surpresas pelo caminho.

A primeira parte do plano deu certo, e na sexta a noite o grupo chegou em Praia Grande a tempo para comer um assado de tira e organizar as bikes. O desafio de vencer mais de 1.100m de altimetria numa única subida de gradiente altíssimo, levando de equipamento de camping e alimentação não era tão simples, e mesmo o setup mais enxuto passava dos 22 kg. Com tudo pronto, dormimos algumas horas e caímos na estrada logo ao amanhecer.

Para nossa sorte, a garoa persistente dos dias anteriores parecia dar uma trégua. Mas, logo ao ingressar na estrada de terra, veio o primeiro imprevisto: a via passava por obras de asfaltamento, e devido a quantidade de chuva acumulada, estava quase intransitável. Ainda insistimos mais um pouco, e depois de andar cerca de 10km, já cobertos de lama, percebemos que seria inevitável abrir mão da rota original. Ao custo de 30km adicionais, desviamos do atoleiro. Dali em diante, seria necessário aumentar o ritmo e encurtar as paradas pra conseguir completar a subida antes do anoitecer. 

A mudança de rota acabou sendo positiva, e o pavimento melhor rendeu. A chuva voltou a dar as caras. Felizmente, com pouca intensidade e bastante esporádica, mas o suficiente pra nos manter sempre molhados. Andando num ritmo mais acelerado, aproveitamos os estradões planos e a bonita vista dos campos com a serra ao fundo. 

Ao chegar em Jacinto Machado, o relógio já passava das 11h, e havíamos percorrido pouco mais da metade da distância esperada para o dia. Logo na entrada da cidade, avistamos uma lavagem automotiva e não tivemos dúvida: entramos todos na fila. Recebidos com bom humor, aproveitamos para passar uma água nas bikes e tirar o excesso do barro acumulado. 

Sem tempo sobrando, logo voltamos a estrada e apertamos mais o ritmo em direção a Timbé do Sul, dessa vez aproveitando uma rodovia bem asfaltada e vazia. Conforme o destino ia se aproximando, começávamos a sentir também o começo da elevação. Apesar da neblina, começava a se revelar no horizonte a altitude da Rocinha. Tão logo entramos na cidade, rumamos em busca de um lugar para fazer aquela que seria a única refeição do dia. Dali em diante, o plano era estar auto suficiente pelas próximas 24hs, e era necessário se abastecer.

A acelerada do trecho final havia recuperado o atraso, e aproveitamos o tempo extra para almoçar com calma. As dores e o cansaço começavam a surgir, e era hora de apelar para o gel e analgésicos, e claro, pro alongamento. O desgaste ainda era pequeno, mas havia toda a subida a ser vencida. Logo no pé da serra, fizemos nossa última parada para dar um mergulho no Poço do Caixão, uma piscina natural de formação rochosa, com águas cristalinas vindas dos cânions. O banho de água gelada ajudou, e deu um animo extra para encarar o desafio que nos trouxera até ali. 

A maior surpresa que a Rocinha nos reservava não era sua altitude, mas as condições climáticas. Nos primeiros 2km, a forte neblina que encobria a serra foi se tornando mais espessa, até o ponto em que virou uma chuva constante, que nos acompanharia o resto do dia.

Numa subida como esta, não basta preparo físico, mas também é necessário uma relação adequada e, especialmente, conhecer os próprios limites pra não extenuar cedo. Cada um tem que seguir seu ritmo, e nesse momento nosso grupo foi ficando mais disperso, separados pela condição de cada um. Sabendo que meu condicionamento estava devendo, decidi que subiria com calma e no tempo que o corpo permitisse. 

Numa cadência lenta, contínua e silenciosa, eu e Alejandro seguimos solitários por quase 4 horas, apreciando em nossos pensamentos a vista linda que deveria haver ao nosso lado, mas que a neblina encobria completamente. A medida que ganhávamos altitude, um novo problema ia se revelando: a queda acentuada da temperatura, trazendo uma condição muito pior do que aquela para qual havíamos nos preparado. Completamente molhados e sujos, com um ambiente encharcado por semanas a fio de chuvas, acampar no topo de um cânion com frio e vento não parecia sensato.

A cada metro percorrido, a euforia de estar vencendo a subida ia dando lugar a ansiedade de ter que enfrentar aquelas condições. O improvável plano de emergência agora já parecia inevitável: recorrer a única hospedagem próxima, localizada há poucos quilômetros adiante do final da subida. Sem reservas ou maiores informações sobre disponibilidade, teríamos que contar com a sorte e boa vontade dos anfitriões. 

Na nossa chegada ao topo, não havia qualquer sinal de celular, e fomos salvos pela criatividade dos mais rápidos do grupo: pedras no asfalto formavam uma seta que apontava para os dizeres “Fomos para a pousada” riscados no guarda corpo da rodovia. Sentindo um certo alívio, não perdemos tempo em seguir também ao destino.

Os 4km seguintes eram uma descida lamacenta, de cascalho muito irregular e que foi, seguramente, muito mais difícil do que qualquer trecho da subida. O vento e a chuva, somados ao frio de 9ºC, produziam uma sensação térmica congelante. Vestindo roupas de verão e completamente molhados, era dificil não perder a concentração. A baixíssima visibilidade da neblina densa no anoitecer não nos permitia enxergar os muitos buracos e pedras, e nos restava torcer pra não ser derrubados por alguma delas. Aqueles 15 minutos até a pousada pareceram uma eternidade.

Ao cruzar a porteira da entrada e ver os amigos acenando das cabanas, veio a sensação de que o pior havia passado. Divina providência ou sorte, fato é que já não se imaginava encerrar um dia de pedal daqueles com um banho quente e sentado a beira de uma lareira. Pra completar a reversão total das expectativas, um jantar regado a vinho. Bem diferente do plano inicial, é claro, mas sem maiores frustrações. 

No amanhecer do dia seguinte, reencontramos o sol. Aproveitamos os primeiros raios para colocar as roupas a secarem um pouco durante o café, e replanejar o roteiro do dia. A chuva havia deixado as estradas de cima da serra intransitáveis, e a prudência recomendava voltar por onde subimos. Se o roteiro era repetido, pelo menos o tempo havia mudado. Ao cruzar novamente pelo mirante do topo da Rocinha, fizemos uma parada para apreciar o horizonte agora coberto de nuvens baixas que eram abraçadas pelos paredões dos cânions. Uma vista impactante, mas que avivou a curiosidade de ver aquele cenário em um dia de tempo aberto. 

Se subir a Rocinha é um desafio, descer ela não deixa de ser uma recompensa. Os 13km serra abaixo foram um verdadeiro embalo para o dia longo de pedal que enfrentaríamos. O cansaço do dia anterior não demoraria a cobrar, e decidimos aproveitar aquela energia matinal para ganhar tempo. Andando em ritmo forte, compensamos a partida tardia, e próximo do meio dia já havíamos percorrido metade da distância do dia. 

Assim como o tempo, a temperatura também havia mudado completamente. O sol já não dava trégua, e a medida que a tarde avançava, o calor ia aumentando. Se o trajeto não era novidade, as paisagens agora com o tempo limpo eram bem mais impactantes. No último trecho, ao se aproximar de Praia Grande, fomos presenteados com uma das vistas mais bonitas da viagem: os arrozais cheios d’água com os cânions ao fundo, iluminados pela luz dourada do sol de fim de tarde. 

Se nem tudo saiu como o planejado, o resultado final nos deixou felizes. Percorridos 210km e mais de 2.000m de altimetria em 2 dias, pudemos conhecer de perto uma das mais bonitas regiões do sul do país. Vencemos a Rocinha, mas ficou a vontade de voltar lá mais uma vez. 

Veja o mapa detalhado do pedal: