O CIRCUITO VALE EUROPEU - POR BRUNO LEITE

De acordo com todos os guias e o histórico climático, julho é o melhor mês para quem deseja evitar chuvas no circuito do Vale Europeu. Claro que no lugar de chuva, o ciclista precisa lidar com o frio, mas esse era um acordo que estávamos dispostos a fazer. Alinhei as minhas férias com as dos meus amigos — Flávio e Felipe — e programei os percursos para completar os quase 300 quilômetros, com 5000 metros de ganho de altimetria, em seis dias de pedal, iniciando no dia 9 de julho, em Timbó, Santa Catarina. 

Minha moral estava alta. Minha MTB da Spino tinha chegado a pouco tempo, mas já havia rodado com ela o suficiente para saber que estava bem ajustada e confortável para mim. Meus treinos também iam bem, havia conquistado alguma resistência, embora fosse um exagero dizer que eu estava em forma. Todas as reservas de hospedagem e outros detalhes estavam certos. Flávio já havia completado o circuito no ano anterior carregando sua bagagem em alforjes e gostaria de passar mais tempo pedalando sua bicicleta do que a empurrando morro acima. Apesar de meu desejo por um bikepacking, decidimos focar nossa experiência em apreciar o percurso sem a complicação da carga extra. Por isso contratamos um serviço de translado de bagagem, o que se revelou uma boa decisão. Para nossa frustração, faltando uma semana para o início de nossa aventura, uma sombra surgiu no horizonte: apesar de nossos melhores esforços em evitá-la, a chuva nos encontraria — pelo menos era isso o que as previsões do tempo apontavam. Como não faz muito sentido lamentar por aquilo que não se controla, aceitamos nosso destino, equipamos nossas capas de chuva e partimos para o início de nossa jornada.

No domingo cedo, o primeiro dia de percurso, nuvens escuras cobriam os morros que cercam Timbó, mas não chovia. Saímos do centro da cidade, seguindo para o norte, torcendo para que o tempo não mudasse. Em poucos quilômetros o pavimento deu lugar a estradas de cascalho fino e areia. Os morros cobertos por mata nativa estavam sempre a nossa volta, enchendo nossos olhos com belas paisagens. Por 20 quilômetros, rodamos sem grandes esforços, seguindo por um caminho plano. A partir deste ponto a estrada seguiu subindo pela encosta dos morros, por cerca de 9 quilômetros. Como consolação, um ribeiro corria ao lado da estrada, no sentido contrário ao nosso, muitas vezes com belas quedas d’água. 

No trecho final da escalada, na Estrada do Ribeirão Carolina, encontramos o primeiro grande desafio de subida. O caminho se verticalizou ainda mais e subia serpenteando o morro. Estradas são feitas assim para aliviar a inclinação da subida, mas ainda assim o gradiente alcançou cerca de 20%. O esforço foi enorme, usamos todas nossas forças e determinação para alcançar o topo pedalando. Um local, que passava por ali guiando outro grupo, nos viu recuperando o fôlego e disse enquanto ria: “bem vindos ao Vale Europeu”. De fato essa escalada foi uma amostra do que nos aguardava, mas para aquele dia o ganho de elevação estava pago e restava apenas apreciar a descida forte e depois o caminho plano até Pomerode. Escapamos da chuva nesse pedal, mas o clima continuava ameaçador. Tiramos o resto do dia para descansar e aproveitar a culinária alemã típica do local.

Começamos cedo o segundo dia de pedal. Havia chovido na noite anterior, mas agora o tempo havia voltado para apenas nublado. De acordo com o planejamento, esse seria o percurso mais longo, mas não o mais pesado. Percorremos uma pequena distância e logo chegamos a escalada Wunderwald. Assim como a subida do dia anterior, fomos acompanhados por riachos, corredeiras e pequenas cachoeiras. Quando o caminho não estava completamente cercado por vegetação verde, então um de seus lados se abria para algum vale abaixo, geralmente exibindo uma clareira com algum pequeno sítio. A estrada estava bem molhada, mas não havia lama, nossos pneus nunca ameaçaram escorregar. 

Apesar dos trechos muito íngremes, com gradiente superior aos 20%, estes seguimentos eram curtos e intercalados por partes mais amenas. O caminho era desafiador, mas não exaustivo, o que tornou tudo muito mais agradável. Chegamos no topo ofegantes, mas animados. Fizemos um pequeno lanche, para devolver um pouco do açúcar ao sangue e nos lançamos na longa descida. Com o corpo ainda quente pelo esforço da subida, sentimos o impacto do ar frio matinal, conforme acelerávamos morro abaixo. Descemos por vários minutos até alcançar o trecho plano, que voltava em direção ao limite entre Pomerode e Timbó, agora ao sul das duas cidades. Entramos em uma região um pouco mais urbana e seguimos por vias pavimentadas por alguns quilômetros. Quando começamos subir o segundo grande morro daquela rota, o caminho ainda seguia por uma estrada de asfalto perfeito. 

Nos distraímos com o belo córrego, que descia por uma parede de pedra a nossa esquerda, e mal percebemos quando o cascalho tomou a estrada e o caminho se inclinou ainda mais para cima. Como sabíamos que aquela seria a última grande subida do dia, abaixamos nossas cabeças e queimamos nossas reservas de energia para completá-la. Não notamos as nuvens ficando mais carregadas até que finalmente terminamos de descer esse morro. A chuva nos encontrou quando fizemos uma parada para investigar um possível furo no pneu traseiro do Felipe. Vestimos as capas de chuva e seguimos em direção à cidade de Indaial. Sabíamos que os 30 quilômetros até o final do percurso, em Rodeio, eram majoritariamente planos, então não nos deixamos incomodar pela chuva. 

Em Indaial, paramos em uma pastelaria para almoçar e seguimos atravessando as várias pontes que conectam as duas metades da cidade sobre o Rio Itajaí-Açu. Ficamos especialmente impressionados pela ponte pênsil do Warnow, que apesar de ser estreita, ainda é utilizada por carros populares para travessia do rio. Nesse ponto ainda faltavam 20 quilômetros até alcançarmos o nosso destino e o trecho até as cidades de Ascurra e Rodeio não era dos mais bonitos. Somando isso com o estradão encharcado, que tornou o giro consideravelmente mais pesado, e a chuva que não deu trégua, nos sentíamos cansados. Quando finalmente chegamos em nossa pousada, ainda tivemos que lavar todo nosso equipamento antes de tomar um banho quente e descansar para o próximo dia.

Começamos tarde o terceiro dia. A chuva do dia anterior persistiu durante a noite toda e seguia firme pela manhã. Sabíamos que o percurso desse dia, apesar de ser o mais curto, também era o mais desafiador de todo o circuito. Por isso aguardamos por um tempo, torcendo para que a chuva ao menos diminuísse sua intensidade, mas nem isso conseguimos. Por volta das 10h da manhã decidimos que era inútil esperar mais, e saímos naquelas condições mesmo. Mais tarde descobriríamos que não faria diferença esperar mais — a chuva apenas se tornaria mais forte durante aquele dia. 

Pedalando para saída de Rodeio, por suas ruas de paralelepípedos, nosso espírito abatido se lembrou da sensação de aventura e começamos a fazer piadas de nossa situação e dar risadas uns dos outros. Sabíamos que aquele seria um dia memorável. Apenas 2 quilômetros após sair de nossa pousada, entramos na famosa Subida dos Anjos. Esse segmento se estende por 8,5 km e sobe 650 metros. Apesar do ganho de elevação impressionante, nenhuma parte desta subida era tão íngreme quanto as escaladas dos pedais anteriores. Logo começamos ver as esculturas de anjos espalhados por uma grande extensão da estrada. Paramos junto a estátua do Cristo, mas o restaurante ali estava fechado, provavelmente descrentes que haveria ciclistas tolos o bastante para pedalar naquele dia. Não tivemos escolha a não ser continuar nossa escalada. O céu estava limpo o bastante para ver, olhando precipício abaixo, o tanto que havíamos subido. Apesar da chuva ter tornado tudo cinza, a beleza daquele lugar ainda transparecia. 

Levamos quase 2h para fazer os primeiros 10 quilômetros daquela rota, mas estávamos cheios de esperança que quando finalmente alcançássemos o topo, o rendimento aumentaria muito. Não aumentou. A estrada encharcada aumentava muito a resistência de rolagem, era necessário fazer muita força para continuar avançando em trechos planos. A chuva fria também estava cobrando seu preço. Não achamos nenhum local aberto para nos reabastecer. Ficamos desenergizados e entramos no modo sobrevivência, mas as complicações não pararam por aí. As sapatas dos freios v-break do Felipe se desgastaram totalmente e ele se viu obrigado a empurrar sua bicicleta mesmo nas descidas. Circulando pelas telas de meu GPS, descobri que haviam mais escaladas para encarar aquele dia. Elas eram muito menores que a Subida dos Anjos, o que as camuflou no perfil de elevação do percurso, mas também eram um tanto mais íngremes. Se houvesse escolha, talvez teríamos desistido, mas não havia escolha, ninguém viria nos resgatar. Chegamos aos nossos limites e continuamos pedalando depois disso. Alcançamos o fim do pedal fracos demais para comemorar, mas nos sentimos orgulhosos de ter vencido aquele dia. Passamos o resto do dia nos aquecendo, descansando e enchendo nossas barrigas com a comida deliciosa da pousada. O dia seguinte seria melhor.

 

Começamos o quarto dia cheios de expectativa. Cedinho, durante o café, ainda chovia forte, e nenhum de nós tolerava a ideia de rodar debaixo de chuva por mais um minuto que fosse. Entretanto, a previsão do tempo era resoluta: a chuva terminaria de vez na próxima hora. Foi exatamente isso que aconteceu. Graças a dica que o Douglas, nosso transportador de bagagens, nos deu, não precisaríamos nem mesmo sofrer com nossas sapatilhas ainda molhadas — sacolas plásticas por cima de nossas meias manteriam nossos pés secos. Ele também nos trouxe pares extras de sapatas de freios para a bicicleta do Felipe, se tornando um verdadeiro herói para nós. 

Encorajados pela primeira aparição do sol desde o início do circuito, saímos de nossa pousada e imediatamente vimos o Salto Donner despejando um volume impressionante de água queda abaixo. Seguimos rumo ao norte passando pelos arrozais de Doutor Pedrinho, que haviam se transformado em extensos lagos rasos e barrosos nos últimos dias. Continuamos pela ciclovia da rodovia que segue lado a lado com o Rio Benedito até a entrada da Cachoeira Véu da Noiva. A boa velocidade que mantivemos nesse trecho plano nos fez voltar a sentir que o pedal rendia bem e trouxe o brilho de volta aos nossos olhos. Entramos na trilha da cachoeira sem nos importar com a lama. Não quisemos nos aproximar muito da cachoeira, apesar de sua beleza, porque os respingos e a nevoa levantada por ela nos encharcaria em poucos minutos, além de nos lembrar da chuva traumática dos dias anteriores. Voltamos para a lanchonete na entrada da trilha, almoçamos por ali e nos recarregamos para o próximo trecho que seria bastante inóspito, conforme avisado por nossas fontes. 

Saindo da lanchonete imediatamente iniciamos uma grande escalada pela rodovia, mas nos sentíamos muito bem e a subida não prejudicou em nada nosso humor. Descemos por mais alguns quilômetros na rodovia até que finalmente entramos em um acesso rural para leste. Havia várias subidas, descidas, travessias de rios sem ponte e lama, muita lama mesmo. A lama não era do tipo que gruda nos pneus e trava suas rodas, assim ela se tornou mais uma diversão do que uma preocupação. Todos estavam com a energia alta e sorrisos nos rostos. A paisagem mudou bastante conforme a estrada avançava, atravessando campos abertos, passando por matas tropicais e chegando numa região pinheiros e araucárias. Esse caminho foi o meu trecho preferido de todo o Vale Europeu. Nos quilômetros finais, sentimos a temperatura caindo e uma neblina espessa desceu sobre a região. Olhamos para os dois lados e tivemos a sensação de estar pedalando entre dois precipícios. Foi só então que notamos que, na verdade, havia um lago de cada lado da estrada e as águas refletiam a neblina, criando a ilusão de um grande vazio. Havíamos alcançado a região de Alto Cedros, o destino do dia.

No quinto dia o Sol resolveu aparecer sem ressalvas. Durante a noite toda um vento forte afastou a massa de ar úmido que pairava sobre o Vale Europeu. Pela manhã ainda ventava muito e estava frio o suficiente para exigir o uso de corta-vento. Fomos avisados que não havia sinal celular no percurso todo, e também não deveríamos contar com nenhum ponto de abastecimento, por isso preparamos sanduíches para viagem e levamos bastante água. Iniciamos rodando na direção oeste, sentido Pedra Preta na marginal da represa do Rio dos Cedros. Passamos pela mesma estrada com lagos dos dois lados do dia anterior, agora sem neblina, permitindo apreciação da paisagem em sua plenitude. O vento soprava forte contra nós, até mesmo nas descidas se tornou necessário pedalar para conseguir avançar. 

Depois de quase 10 quilômetros, deixamos a região do lago, pedalando agora entre pinheiros, num constante sobe e desce. As árvores e a mudança de direção aliviaram a dificuldade imposta pelo vento. A rota em si não era tão desafiadora, mas nesse ponto a fadiga dos dias anteriores já começava acumular e era difícil encontrar energias para fazer grandes esforços ou mesmo para apreciar as paisagens. Me sentia mal, não desejava outra coisa além do fim do pedal. Sem muitas opções, segui em frente, tentando manter o ritmo dos meus amigos. 

Depois de uma hora e meia fazendo uma longa escalada gradual, alcançamos o ponto mais alto do percurso. Do topo de uma pedreira, era possível ver toda uma região extensa abaixo, completamente coberta por matas. A partir desse ponto o gradiente médio seria negativo e o vento forte estaria soprando em nossas costas, nos ajudando, em vez de atrapalhar. Fizemos mais um pequeno desvio, para ver a cachoeira Formosa, e seguimos em direção à região de Palmeiras. A estrada descia pela encosta dos morros que cercam a barragem do Rio Bonito, revelando o grande corpo d’água abaixo. Diferente de todos os outros rios, lagos e represas que vimos no Vale Europeu, o nível da água estava evidentemente muito abaixo do normal — essa é uma bacia hidrográfica totalmente diferente e não havia recebido as recentes chuvas volumosas que passaram ali por perto. Paramos em Palmeira Central para encontrar algum local para almoçar, mas chegamos muito tarde para isso. Seguimos então até nossa pousada, onde felizmente fomos recebidos com um café farto.

No sexto dia finalmente fez o frio prometido do inverno no Vale Europeu. Quando iniciamos nosso pedal, por volta das 09:00 da manhã, a temperatura era 6°C. Todos estavam cansados, mas a proximidade do fim nos deu o ânimo necessário para encarar mais este percurso. Deixamos a região de Palmeiras e seguimos para sul, passando por diversos sítios e vilarejos no caminho. Pelo que havíamos estudado no perfil de elevação do percurso, sabíamos que predominariam as descidas, mas não imaginávamos o quão longas e quão íngremes elas seriam. A primeira grande descida, seguiu por pelo menos 2 quilômetros, com o gradiente variando de -10 à -18% de inclinação. Nossos dedos doíam de tanto segurar nossos freios. No fim da descida aproveitamos para tomar um chocolate quente. Seguimos por mais alguns quilômetros até chegar ao pé da temida subida do Cunha. 

O Sol já estava alto e a temperatura estava mais agradável. Decidimos tirar nossos agasalhos e partimos para última grande escalada do circuito. A estrada do Cunha, sobe um grande morro fazendo muitas curvas e alcançando inclinações superiores a 22%. A sensação de que o coração iria sair pela boca era inevitável. Fizemos paradas, empurramos e negociamos com nossos corpos por forças para terminar a subida. Ficamos com a sensação de que com mais treino, ou talvez com menos cansaço, também poderíamos zerar essa subida, mas isso era irrelevante diante da realização da grande aventura que estávamos tão próximos de terminar. Nos lançamos na última grande descida, uma pirambeira quase tão íngreme e longa quanto a anterior e pedalamos em ritmo forte os últimos quilômetros até Timbó, onde o Douglas nos aguardava com todas nossas malas. Na viagem de volta, digerimos melhor o quanto nos divertimos e nos encantamos com o Vale Europeu. Apesar da fadiga, dirigimos para casa conversando empolgados com ideias para nossa próxima aventura de bike.

 

Quem pedalou:

@broleite – fotógrafo e autor do relato
@szymuda – fotógrafo 
@flaviomonteiro

Veja o mapa detalhado do pedal: